Há algum tempo vem se consolidando a ideia de que, com o pretexto de fazer o bem, o estado pode invadir a vida privada dos cidadãos. Foi assim no caso dos emagrecedores, no qual a Anvisa, com a desculpa de que havia um abuso na prescrição de medicamentos do gênero, acabou proibindo anorexígenos à base de anfetamina e restringindo a opção de médicos e pacientes em relação ao tratamento da obesidade.
Em 2007, o falecido deputado Clodovil Hernandes cruzou a barreira das boas intenções com o projeto de lei 2.374/07. Ele previa que o exame de próstata fosse incluído no rol de exames obrigatórios feitos no momento da admissão nas empresas, para homens com mais de 40 anos. Dizia o parágrafo sexto do projeto: "para os trabalhadores do sexo masculino com idade a partir de quarenta anos, o exame médico de que trata o caput deve incluir o exame de próstata, e, quando positivo, seja disponibilizado ao paciente o tratamento psicológico necessário."
Depois da morte do deputado, em 2009, o projeto ficou esquecido até ser arquivado em fevereiro de 2011. Foi ressuscitado, porém, na forma de outro projeto de lei, número 2.822/11, pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), cotado para assumir o ministério das cidades no lugar de Mario Negromonte. O 'novo' projeto é praticamente igual ao de Clodovil: "O empregado com idade igual ou superior a quarenta anos deverá ser submetido ao exame de próstata. Se positivo, será disponibilizado o tratamento psicológico necessário."
Caso seja aprovado, o projeto vai alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT - Decreto-Lei 5.452/43), da mesma maneira que previa o projeto de Clodovil. O artigo 168 desta lei, de 1º de maio de 1943, promulgada no governo Getúlio Vargas, estabelecia uma série de exames obrigatórios no momento da admissão, uma forma de resguardar a saúde do trabalhador e proteger a empresa de eventuais fraudes.
Assim como Clodovil à época, o deputado Ribeiro alega elevados e nobres propósitos. O objetivo do projeto, segundo disse ele em entrevista à Agência Câmara, é prevenir o câncer de próstata. "Apesar de estarmos no século 21, ainda há preconceito contra o exame de próstata, que é essencial na prevenção desta doença perigosa e silenciosa em sua fase inicial", afirmou.
Não há dúvida de que se trata de uma grave doença. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), matou 12.274 homens em 2009. Estima-se que serão diagnosticados 60.180 novos casos em 2012. De fato, recomenda-se o exame após os 40 anos de idade em homens que tiveram casos de câncer de próstata na família e após os 45 anos para todos os homens. O diagnóstico precoce é fundamental para evitar, caso a doença seja detectada, que ela se espalhe pelo corpo e se torne fatal.
Porém, sob o mesmo argumento do deputado Ribeiro (e de Clodovil), poderia se elencar uma série de práticas que podem, com ênfase no 'podem', causar câncer e, por isso, deveriam ser proibidas. Entre elas estão o consumo de calorias em excesso, de carnes vermelhas e embutidos, o tabagismo e — por que não? — a moradia em cidades poluídas. Na mesma linha de pensamento, deveriam tornar-se obrigatórios dezenas de outros exames que podem detectar precocemente um sem número de doenças.
O projeto ainda vai de encontro ao que é ensinado nas faculdades de medicina. "A autonomia é algo que faz parte da ética médica e é algo cada vez mais importante, cada vez mais ensinado aos jovens estudantes de medicina. Em todo hospital, qualquer procedimento, por menor que seja, precisa do consentimento do paciente", diz César Câmara, médico urologista do Instituto da Próstata e Doenças Urinárias do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e do Hospital Sírio-Libanês.
Isso, evidentemente, não quer dizer que o exame preventivo não seja importante ou necessário. "Mas seria melhor uma campanha de orientação e um serviço básico de saúde com acesso ao médico", afirma Câmara. No caso dos homens, há outros problemas de saúde muito mais comuns e que também merecem atenção, como hipertensão e diabetes.
Além de ferir a ética médica, o projeto se opõe ao artigo 5º da Constituição, que assegura o princípio de liberdade e de autonomia do indivíduo. "Uma pessoa deve fazer esse exame se ela quiser", diz Dircêo Torrecillas Ramos, professor da Fundação Getúlio Vargas e presidente da comissão de direito constitucional da OAB-SP. "O certo é haver um esclarecimento, e não a obrigatoriedade de um exame que ainda é um tabu para muitas pessoas, que invade a intimidade do indivíduo."
A assessoria do deputado Ribeiro informou ao site de VEJA que, quando o projeto for regulamentado, pretende oferecer uma opção para que os funcionários possam preencher um formulário recusando o exame e isentando a empresa de qualquer ônus. O projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados em caráter conclusivo. Se nenhuma das comissões que analisa o projeto rejeitá-lo, ele será aprovado sem precisar ir à votação no plenário.
Na câmara, há outros 14 projetos de lei, além do proposto pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que tratam do câncer de próstata. Alguns inócuos, como o de Barbosa Neto (PMDB-GO) que obriga os fabricantes de roupas íntimas a imprimirem orientações sobre a câncer de próstata, colo de útero e de mama nas etiquetas e embalagens de calcinhas, sutiãs e cuecas.
Outras podem representar importantes avanços, como o acesso gratuito dos portadores da doença à medicação de prescrição, como preveem quatro projetos diferentes que tramitam em conjunto.
Menos invasivo que o projeto de Ribeiro é o de Eliseu Padilha (PMDB-RS), que inclui o exame de toque prostático no repertório do Sistema Único de Saúde, mas não de forma obrigatória.
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