Bom Dia! Exatamente às 5h55 o Sol começa a surgir no horizonte da cidade. As nuvens cinzentas vão-se enchendo da brilhante radiação. As praias estão quase que inteiramente desertas, mas algumas pessoas já se atrevem à caminhada enquanto o transporte coletivo, malgrado a total deficiência do sistema, vai trafegando com um grande contingente de trabalhadores que se desloca a fim de cumprir a rotina de mais um dia de trabalho. O metrô só funciona a partir das 8h. O Sol nasce para todos. Nos bairros, na periferia, nos hospitais, terminais de ônibus, feiras livres, colônias de pescadores. No Centro Histórico, em pleno Pelourinho, os pombos vão catando alimento entre um paralelepípedo e outro, onde há mais de um século comemorou-se o centenário da Abolição da Escravatura e onde durante 300 anos o sangue escorria e o suor do escravo não era decorrência do calor, mas da tirania. Os pombos habitam os velhos casarões, algumas corujas preferem o alto das igrejas. Mas é de manhã e as pessoas deslocam-se malemolente, espreguiçando o dia. O nascer do Sol é um espetáculo fantástico. Mas as pessoas não ligam, já vão trabalhar, estão atrasadas, vão sendo substituídos pelo repicar dos sinos. As missas, em geral, começam às 7. Salvador inteira parece um receptáculo para o Deus-Sol.
O sol ainda é o astro-rei. Dos becos e vielas, alguns dos centros das praças, boêmios surgem tentando estar atentos, quase vampirizados pela luz solar, como quem busca uma justificativa para a noite em branco. O hálito azedo, um riso num canto da boca. Das centenas de invasões da cidade ouve-se o choro de crianças. As mulheres já lavam roupas e as vão pendurando nos varais ou por sobre a areia branca na Lagoa do Abaeté. O trânsito passa rente, num volume crescente. Um rastro de fumaça vai invadindo a brisa da manhã. A vida respira, intoxicando-se lentamente. Automóveis invadem o silêncio. Nos terminais de ônibus, usuários vão cruzando a roda viva dos torniquetes. Poucos demonstram disposição. A maioria traz na face a expressão da noite maldormida. O sonho de felicidade, a busca incessante do status de consumidor (e de consumidor implacável, desses que querem comprar tudo) está presente em todos os olhos ainda sujos da noite. Incessantemente condenada a ser uma cidade-verão, Salvador tornou-se também numa cidade-dormitório para os milhares que trabalham em localidades da Região Metropolitana. Os que se dirigem ao Pólo de Camaçari embarcam sonolentos, mas sorrindo. Vista do mar, a cidade é um plano (arquitetônico) inclinado. Os habitantes transitam no sobe e desce do elevador Lacerda e no charriô do Gonçalves. Os faróis já não sinalizam as pedras e recifes aos navegantes. O Sol atravessa os corpos, as avenidas, os pára brisas. Agora, na Orla, tudo é luz. As plantas abrem suas folhas e flores. Jornaleiros invadem as esquinas, oferecem as notícias. Nos jornais anda todo o presente, mas os fatos não cessam, enquanto as rotativas estão ociosas. Meninos de rua ofertam o destino em serviços de limpeza dos pára brisas dos carros. Free-lancers do descaso social. Entre o subsistir e o sobreviver, sem escapatória. A cidade acorda feliz, mesmo que poucos saiam para ver o Sol. O espetáculo está em toda a parte, independe das nossas presenças. Tudo em volta, agora, é movimento. O Sol inventa as cores, aciona as pessoas, enche-as de vida, de beleza, de jovialidade. Energiza os corpos. Faz os homens tornarem a vida num filme de ficção. Mas é Outono, e do patriarca. O café da manhã evapora seu aroma entre um suco de frutas e um copo de leite, dois ovos fritos, pão cacetinho, bananas fritas ou cozida, poucas frutas, aipim e queijo. Chove. Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia. Combinam-se os contatos, os telefonemas, novos compromissos. Há os que só saem de casa depois de consultar o horóscopo do dia. Os astros continuam a determinar nossas vidas. Lêem-se os jornais, ouvem-se as emissoras de rádio, entreolha-se os telejornais, conecta-se a Internet. Muitos leem e respondem os e-mails e parecem habitar as redes sociais. Outros deixam que o dia-a-dia determine o seu estar no mundo. O tempo muda a toda hora. O sinal está aberto e os carros buzinam pedindo pressa. Os humanos giram em redor do próprio eixo, mas esse eixo é uma instância externa que lhes coage e exige de tudo, principalmente eficácia. Na classe média, as crianças vão despertando para a busca de matrículas ou o corre corre da ida à escola. Outras acordam mais tarde e gastam todo o tempo entre brincadeiras, teimosia, televisão e videogame. Jogam a bola da Copa, após o desjejum, ou disparam a fazer perguntas irrespondíveis, como se soubessem que mais vale uma pergunta certa que uma resposta perfeita à pergunta errada. Rápidos, como uma tendência estatística (e hoje mais valem as tendências que os fatos), os milhares de desempregados procuram um lugar ao Sol no mercado sem vagas. Mulheres, e não apenas as baianas, dão o último retoque na maquiagem e deixam o rosto no espelho. Homens exercitam a boa forma. A Turma da Madrugada ainda percorre o Parque da Cidade num Cooper incansável. O calçadão do Jardim de Alá, sob obra de expansão, continuará a ser o trecho preferido para a caminhada. Destino em transe. Solidão na Baixa dos Sapateiros. 15 Mistérios. O comércio começa a abrir suas portas. Nos escritórios datilografam-se os dedos. Mas as agências bancárias só abrem às 10. Café da manhã em hotel cinco estrelas é sempre um bom programa. Exige apenas excelente companhia. Mas em ilhares de mesas faltam o leite e o pão. Enquanto alguns tencionam a vida na embreagem dos seus automóveis, outros tantos descontraem e planejam ações em meio a um engarrafamento no Corredor da Vitória, na Calçada, nas avenidas Oceânica e Paralela, no Iguatemi ou no Rio Vermelho. O trabalho é um ardil. O que todos querem é garantir mais dias para o lazer, ensolarar a existência, eternizar o Carnaval, tornar perene o happy-hour e o cheiro do acarajé invadindo todas as narinas, viver num clima de lua-de-mel, como deus e o diabo gostam. A felicidade continua sendo uma arma quente. Longe da guerra, a milhas e milhas do Oriente Médio, de Itapagipe ao Porto da Barra e daí até Stella Maris, somente os iogues saúdam o nascer do Sol com movimentos de uma ginástica ritualística. Nenhuma ética, exceto a iogue, percorre o amanhecer. Todos seguem de roldão na maré do novo dia, perseguindo outro final de semana. Aos poucos, gigantescas nuvens cinzentas vão cobrindo todo o céu e, quase imperceptível, uma réstia de Sol ilumina Salvador inteira.
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