Uma promessa que envolve bilhões de reais, milhões de sonhos, décadas de história e inúmeros interesses políticos. O enredo da transposição do Rio São Francisco é longo, cheio de personagens, dramas e lendas. Tocar no assunto levanta debates sobre projetos faraônicos, impactos ambientais, demagogia, preconceitos regionais e a tão esperada redenção social e econômica do interior do Nordeste. O abandono de alguns trechos, o bombardeio político ao ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, e agora a promessa de retomada das obras aumentam a ansiedade do povo do Semiárido. Na semana em que a presidente Dilma Rousseff vem a Pernambuco reassumir um compromisso tão caro ao seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva, o JC inicia uma série de reportagens sobre o tema. Nos próximos seis dias, após visitar canteiros de obras em três Estados, mostraremos o que há na superfície e nos bastidores de uma obra de quase R$ 7 bilhões, um projeto que saiu do papel sob polêmica, enfrenta novos desafios, mas que continua necessário.
A transposição do São Francisco tomaria água do rio e distribuiria no Nordeste a partir deste ano, 2012. A promessa foi feita várias vezes, do início até os últimos dias de seu governo, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar disso, nem a presidente Dilma Rousseff, em sua atual gestão, conseguirá concluir a obra secular, pensada pela primeira vez no Brasil de Dom Pedro II, em 1847.
Foram 160 anos de espera até o começo das obras, em 2007, início da contagem regressiva para a água do chamado Rio da Integração Nacional correr pelo Semiárido, matando a sede de pessoas e animais e gerando negócios na região. Cinco anos após o novo começo, o clima de abandono é visível em vários trechos da transposição. O antigo e controverso projeto virou quase unânime, mesmo entre críticos: a obra, irreversível, tem que sair, com qualidade e o menor prejuízo possível aos cofres públicos.
Até virar a transposição em sua versão atual, de canais, túneis e estações elevatórias, o projeto mudou muito, assim como o Nordeste. No século 19, a literatura romântica de José de Alencar, em O Sertanejo, de 1875, descrevia uma região isolada e rude, distante e sem avanços futuros como eletrificação rural. De qualquer cidade sertaneja, era possível contemplar “as noites do sertão, recamadas de estrelas rutilantes”.
A luz artificial hoje atrapalha a romântica vista do céu noturno nas cidades do interior, onde ainda há povoados miseráveis, com torneiras que passam mais de 15 dias sem água. A transposição sempre foi vista como a solução para este problema.
Até o governo do ex-presidente Itamar Franco, o projeto era de um só grande canal, de Cabrobó, em Pernambuco, a Jati, no Ceará, com a água seguindo para bacias de rios e dali principalmente para o Rio Grande do Norte. Fernando Henrique Cardoso virou presidente, em 1994, prometendo fazer a transposição. Foi seu governo que ampliou o projeto para dois canais, o Eixo Norte, o original, mais o Leste, para beneficiar Pernambuco e Paraíba.
Secretário estadual de Recursos Hídricos e Energéticos, José Almir Cirilo era secretário-adjunto de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente em 1997, na gestão do governador Miguel Arraes. Ele acompanhou as negociações com o time de FHC. “Fomos contra a proposta que estava apresentada porque ela não beneficiava em nada ou quase nada Pernambuco, que tem uma situação crítica de abastecimento. Nos perguntaram o que queríamos e apontamos o Agreste e alguns sistemas hídricos do Sertão que poderiam ser beneficiados. Daí surgiu o Eixo Leste.”
O então ministro da Integração Nacional, o potiguar Fernando Bezerra (não confundir com o homônimo hoje na mesma pasta), era um entusiasta. Prometia licitação em 2000 e, em três anos, a secular obra pronta. Nada saiu. A oposição política era forte mesmo no Nordeste. Sergipe, Alagoas e Bahia, que, em tese, perderiam com a transposição, se rebelaram. Em outubro de 2001, FHC alegou razões ambientais, desistiu do projeto e disse que o rio deveria ser preservado e não transposto.
O que parecia um fim melancólico do projeto virou uma pausa. Sucessor de FHC, Lula resgatou a ideia com força. Negociou, usou a popularidade e peitou opositores: políticos, artistas ou ambientalistas. Na Bahia, o bispo do município de Barra, dom Luiz Cappio, fez greves de fome contra a obra, em 2005 e em 2007. Ganhou holofotes internacionais, mas perdeu a parada. Lula criou um projeto para revitalizar o rio e sanear as mais de 400 cidades e povoados às suas margens. Também apresentou números diferentes. Manteve o teto de retirada de água de FHC, de 127 metros cúbicos por segundo (m³/s), 3% da vazão do rio, quando houvesse excesso no Reservatório de Sobradinho (BA). Mas propôs captar continuamente 26,4 m³/s, 1,42% da vazão. Diante da promessa técnica de haver limite na tomada de água, a resistência foi vencida. O ex-ministro Ciro Gomes então convocou o Exército e começou a tirar o projeto do papel. Era 2007. Algumas empreiteiras pediram aumento antes do início das obras. Outras desistiram.
Mesmo assim, Lula mantinha os prazos. Entregaria o Eixo Leste em 2010 e o Norte, em 2012. Assim, o governo que deu um enredo novo a um projeto tão antigo também deu início aos atuais problemas da transposição. Os bastidores dessa história recente remetem à pressa dos gestores em iniciar e anunciar obras de olho no calendário eleitoral. Planejamento e execução foram comprometidos. E os prejuízos estão a céu aberto: trechos de canais deteriorados antes mesmo de receber água.
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