Dois irmãos em uma moto no meio do Sertão perseguem o carro do JC. A mãe deles pensou que a reportagem era parte de uma nova frente de obras da transposição do São Francisco. Os jovens aceleram na estrada de terra. Queriam entregar um currículo. A série Transposição, Novos Obstáculos mostra hoje a ansiedade, a frustração e os impactos do projeto onde ela parou e onde nunca teve início. Além disso, alerta: a bonança da fase de construção tem prazo curto. Pessoas e governos já se preparam para o pós-obra.
O Nordeste vai esperar alguns anos até ver os 713 quilômetros de canais da transposição do Rio São Francisco virarem um espelho de água a céu aberto, rasgando o Sertão. A execução da obra ainda está em 58%. Mas nas cidades localizadas no traçado das obras, a ansiedade é por uma razão muito mais imediata. Quando a obra parou em 2011, interrompeu pequenos "booms econômicos” em cidades do interior, que viram os hotéis se esvaziarem e o comércio perder força, sem a movimentação de milhares de trabalhadores. Por isso, os novos anúncios de retomada de uma nova frente de construção trazem muita expectativa aos sertanejos.
A transposição lida com proporções gigantescas e por isso precisa de um exército de operários. Para ficar em poucos exemplos, os canais ao todo vão retirar do caminho 82 milhões de metros cúbicos de rocha (900 Maracanãs lotados de pedras) e usar 1,5 milhão de metros cúbicos de concreto, o que daria para construir 750 prédios de 22 andares – Salvador inteira tem 759 edifícios, construídos e em obras.
A demanda gigante por moradia, hospedagem, comida e um tanto de outras coisas consumidas pelos trabalhadores teve impacto forte em cidades de fraca economia. A obra já teve 9 mil empregados. Ano passado, nove consórcios de empreiteiras pararam. Desses, apenas um voltou, um total de quatro frentes em atividade, até o mês passado.
Segundo os dados oficiais, o número de operários da transposição hoje seria de 3.900. Segundo apurou o JC, após visita a todos os canteiros de obras, há hoje cerca de 2 mil homens. Seja qual for o número, o contraste é grande entre onde há movimento e onde a transposição parou. No lote 9, em Floresta, alojamentos antes lotados hoje exibem nas portas a palavra “vazio”, em grandes letras.
O Ministério da Integração Nacional informa que a retomada será gradativa. Projeta 6 mil operários até julho, uma espera ansiosa.
“Aqui era lotado direto por causa das obras. Passou quase um ano assim, sem vagas. Daí começou a cair, até que em outubro tivemos praticamente zero hospedagem. Tinha um, dois quartos alugados, de 30 que nós temos”, conta Juliano Cícero, 22 anos. Ele é um recepcionista-faz-tudo que há dois anos e meio realiza todo tipo de serviço e ajuda na administração do Hotel Portal do Sertão, em Salgueiro.
A cidade, no Sertão Central de Pernambuco, virou símbolo da mudança econômica levada pelas obras federais. É lá onde se cruzam a transposição e a Ferrovia Transnordestina, que tem a base industrial no município. Mas o emprego em Salgueiro não é o mesmo. Com o avanço da estrada de ferro, as frentes de obras lentamente migram para áreas mais distantes. A transposição ali perto parou no lote 2, há um ano, reduziu de 600 para 200 os operários do lote 3 e desde dezembro espera o lote 8.
Por tudo isso, a preocupação no Portal do Sertão, conta Juliano, é pagar as prestações da troca do ar-condicionado de todos os quartos por modelos split. “O hotel sempre tem movimento nas férias. Salgueiro é entroncamento, caminho para muita gente que viaja para rever a família no interior ou na capital. Então, em dezembro e janeiro até que melhorou. Mas quando passar essa época, sei não.”
A incerteza é grande principalmente para quem ainda sonha em ter sua primeira oportunidade de ganhar com a transposição. Entre Salgueiro e Terra Nova, a 15 quilômetros da estrada asfaltada mais próxima, a ansiedade dessa gente seguiu a reportagem na garupa de uma moto.
Como dito no início do texto, o carro do JC seguia o traçado desde o começo do Eixo Norte da transposição, uma jornada de 70 quilômetros em estradas precárias. Ali, no meio do nada, onde quase não há movimento na pista de pedras e areia, a mãe de Raimundo Pereira Dum Neto, 38 anos, desempregado, notou o veículo passando.
Segundo Raimundo, pelo local isolado, ela acreditou que era o pessoal da Mendes Júnior ou da GDK, que há quase dois meses deveriam ter iniciado as obras do lote 8, perto da casa da família. O ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, em 16 de dezembro chamou a imprensa para “vistoriar as obras” daquele lote. Até dirigiu um dos quatro caminhões fora de estrada, gigantes com capacidade para 120 toneladas, e posou para fotos. Até o mês passado, os imensos veículos não carregaram um saco de areia.
Raimundo seguiu a orientação da mãe. Apressado, pegou um envelope e pediu carona ao irmão, Cícero Romero Dum, 32 anos, vigia do consórcio e que estava em casa, no momento. Subiram na moto e correram para alcançar a reportagem. Era a corrida do emprego, para entregar apenas um currículo.
O engano foi desfeito e Raimundo, mesmo frustrado, topou conversar um pouco. Ele ficou desempregado às vésperas do Natal passado. Voltou do Ceará para a casa dos pais em 23 de dezembro e não conseguiu mais trabalho. “Antes eu estava em Petrolina, como chefe de turma, na reforma de casas. De lá fui para Fortaleza, trabalhar em um escritório imobiliário, mas aí não estava dando certo não. Então eu vim embora e estou aqui.”
Cícero também voltou para casa após perder o emprego. Ele trabalhava em Palmares, em um trecho da BR-101, e na volta para Salgueiro teve a sorte de conseguir o posto de vigia, o único trabalho no lote 8, em Salgueiro.
O pacote de obras, para a construção de estações elevatórias em Salgueiro, Terra Nova e Cabrobó, foi licitado duas vezes. Na primeira, o Consórcio LJA e Ebisa propôs tocar os serviços por R$ 97,6 milhões, mas desistiu antes de começar. Depois de uma nova licitação, a obra foi assumida pela Mendes Júnior e GDK por quase o triplo do valor original, R$ 275,9 milhões. E, apesar do anúncio de Bezerra Coelho feito em dezembro, como se o lote 8 estivesse em obras em Salgueiro, ele só começou em 11 de janeiro, mas em outra frente, Cabrobó. A chegada da primeira equipe foi acompanhada, por coincidência, pela reportagem do JC.
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